A proximidade do dia 5 de novembro de 2014 trazia uma inquietação à ministra Eliana Calmon. Nessa data, ela fará 70 anos, o que a obrigaria a deixar o cargo que exerce há 14 anos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e encerrar a carreira de 34 anos na magistratura. Às vésperas da aposentadoria compulsória, a baiana se perguntava: “O que vou fazer a partir de agora? Advogar? Nem pensar. Lecionar? Não vou ensinar mentira para os meninos. ”Trabalhar numa ONG parecia uma boa ideia, até que convites para entrar na política começaram a aparecer.

Na entrevista concedida ao site do STJ, a ministra conta que a decisão de antecipar a aposentadoria para o próximo dia 18 de dezembro só veio realmente quando ouviu uma declaração do senador Pedro Simon (PMDB-RS) pela televisão. “E ele nem sabe disso!”, revela a magistrada. Ainda que nunca tivesse passado pela cabeça dela ir para a política, como diz, “o destino vai mostrando os caminhos”. Por esses caminhos, chega à política quase como chegou à magistratura – “meio sem querer”.

A ministra – que se intitula uma juíza “boca-rota” – fez história no Tribunal da Cidadania. Não só porque foi a primeira mulher a ocupar o cargo de ministra num tribunal superior brasileiro. Não porque conduziu umas das maiores investigações comandadas pelo STJ – a Operação Navalha. Nem porque esteve à frente da Corregedoria Nacional de Justiça, enfrentando no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o que chamou de “bandidos de toga”.

Eliana Calmon escreveu um capítulo dedicado aos magistrados vocacionados na história do STJ e do Judiciário. Crítica do corporativismo incrustrado no Poder Judiciário, ela dispara: “Defender prerrogativas é defender nada.” Suas declarações despertaram rancores e amores. “Todo mundo que quer mudar desperta esses sentimentos”, conforma-se.

Franca, diz que fala “porque é falando que a gente corrige as coisas”. Afirma ter estudado profundamente o poder desde que ingressou na magistratura, e conhecido suas entranhas nos dois anos em que esteve como corregedora, de 2010 a 2012. A experiência certamente influenciou sua gestão na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Ministro Sálvio de Figueiredo (Enfam), responsável pela capacitação de juízes, novos ou experientes.

Sua palavra: transparência. Seu desejo ainda não realizado: mudança. Seu futuro, como ela mesma define: um salto no escuro.

Ministra, são quase 40 anos de serviço público, um pouco menos de magistratura, 14 de STJ. Para quem diz que chegou à magistratura meio sem querer, foi uma caminhada e tanto.

Eliana Calmon – Quando eu deixei o Ministério Público foi muito difícil. Fiz concurso para juiz federal, meio que por fazer, mas fiquei na dúvida quando comecei a passar. Foi me dando uma agonia! Passei em quarto lugar e fui ao tribunal [TRF da 1ª Região] para pedir para colocar o meu nome no último lugar. Daí, o secretário do concurso me levou ao presidente do tribunal e ele me catequizou, disse para eu não fazer aquilo… Eu disse que ia pensar, mas disse pra me livrar, porque eu estava certa de que não ia assumir. Aí, o destino vai mostrando pra gente os caminhos. É tão engraçado, às vezes a gente não traça nada e as coisas simplesmente acontecem.

E a senhora considera que travou o bom combate?

EC – As pessoas dizem “eu cumpri o meu dever e estamos conversados”, “eu cumpri o meu dever e deixei tudo como era antes”. Eu não. Eu fui além de cumprir o meu dever e eu quis mudar algumas realidades.

Mudar o Judiciário?

EC – Sou uma mulher que quer mudanças e me dediquei muito ao Judiciário. Estudei profundamente as crises do Judiciário e os problemas do Judiciário. Quando era juíza de primeiro grau, queria entender como as coisas se passavam dentro do Judiciário, para não termos um resultado de gestão. O Judiciário necessitava de mudanças profundas. E eu me dediquei a isso. Me dediquei a estudar essas mudanças. Para mudar, você tem de entender por que as coisas começaram assim.

Como foi esse estudo?

EC – Fiz isso durante muitos anos. Tenho recortes e recortes de jornais, artigos, muitos livros sobre o Poder Judiciário. Eu lia tudo, até duas letras agarradas. Entrevistas de professores estrangeiros pra saber por quê. E hoje eu sei por quê. Eu tive a sorte de chegar a corregedora. Na Corregedoria Nacional eu conheci profundamente o Poder Judiciário. Eu costumo dizer que conheci as suas entranhas.

E o que a senhora viu?

EC – Eu vi um poder de uma importância fundamental para qualquer regime democrático. Eu vi a confiança do legislador constitucional no Judiciário, porque praticamente colocou nas mãos desse Poder todo o controle das políticas públicas, da sociedade, da condução dos novos direitos. Costumo dizer que o legislador constitucional deu um cheque em branco ao Poder Judiciário. E o Poder Judiciário não soube sacá-lo. É lamentável.

O Judiciário faz menos do que poderia?

EC – Passados 25 anos, continuamos com uma luta em defesa de prerrogativas, de situações corporativistas. Não percebemos que isso apequena o Poder Judiciário. Ele é muito maior do que essa pequenez que é desenhada pelas instituições corporativas. Ele é bem maior.

Defender prerrogativas é defender nada. Temos muitas bandeiras a defender no Judiciário. E a bandeira principal, a que tem de ser desfraldada de logo em todo e qualquer tribunal, é a bandeira da mudança e, com ela, a da transparência. Se conseguíssemos isso, com bastante legitimidade, já era meio caminho andado.

E o que precisa para isso?

EC – Precisa maior compreensão da posição política que ocupa hoje o Poder Judiciário. Eu não posso mais ter juízes que sejam “fazedores de processos”. Eu preciso de um juiz que tenha a força suficiente, com convicção e desempenho, para mudar políticas públicas que cabe a ele fiscalizar e implementar. O juiz não pode mais ser um espectador que olha de longe o que o governo está fazendo. O legislador transformou o juiz em realizador fiscal das políticas públicas. Não sendo executadas, cabe ao juiz determinar que se faça. E, se mal executadas, cabe ao juiz dizer como devem ser feitas, e fazer a correção. Por isso, o juiz de hoje é um agente político. Ele pode desempenhar uma parcela de poder na sociedade a que serve.

Os novos juízes já têm esse entendimento?

EC – Sim. As escolas de magistratura têm sido um grande incentivo. Mas, por outro lado, tenho muita preocupação com juízes novos, porque muitas vezes são atraídos para a magistratura como se fosse um emprego. Tem um bom salário e, para o jovem que às vezes sai da mesada para o primeiro salário, é espetacular. Tem também o fato de você não ter chefe, não ter de dar satisfação, tem o charme da magistratura, porque é reconhecido socialmente. Tudo isso atrai. Mas temos de mostrar o outro lado.

O juiz é solitário, o juiz decide sozinho. Se ele acerta, ele acerta para o Poder Judiciário. Se ele erra, ele erra sozinho e tem de assumir sua responsabilidade. A vida pessoal de um juiz também fica limitada. Para ser um bom juiz ele precisa ter um comportamento muito reto. Por que eu exijo isso mais de um juiz do que de outros cidadãos? Porque o juiz trabalha com o certo, com comportamentos, com valores éticos que estão incrustrados na sociedade a que ele serve. Ele é um profissional diferenciado, porque ninguém perdoa a falta pessoal de um juiz.

Dizem que é como um sacerdócio…

EC – A magistratura é uma carreira que exige alguns sacrifícios. Acho que essa restrição na vida privada é uma coisa que incomoda. Você não é um cidadão desconhecido; você é um juiz. Na Enfam, eu tentei passar um pouco disso. Nós mostramos a importância de ser juiz. Eles saem daqui com uma ideia boa de que o juiz não é uma ilha isolada, que o juiz tem de estar conectado com os outros poderes.

A senhora enfrentou preconceito por ser a primeira mulher a entrar no STJ?

EC – Não. Eu acho que o STJ já estava muito preparado para receber uma mulher. No início, a coletividade resistiu. Jocosamente, diziam até que não tinha banheiro de mulher e por isso não podiam eleger uma mulher. Mas, quando cheguei, não encontrei nenhum problema, me receberam muito bem.

Mas, como sempre traço meus caminhos para frente, observei que a disputa não é entre homem e mulher, é a disputa de poder. Em qualquer tribunal, você começa a disputar poder a partir dos cargos que vai exercendo. Isso existe, mas não pelo fato de eu ser mulher. Eu nunca prestei atenção ao preconceito. É pequeno demais para eu parar e me preocupar. Sempre pensei: “Se eles têm preconceito, eu não tenho, então vou seguir o meu caminho. E se alguém barrar o meu caminho, eu vou passar em cima como um trator.” E a minha disposição sempre foi tão grande que eu nunca fui obstada pelo fato de ser mulher.

Como se manter humilde mesmo quando se está no poder?

EC – Você não pode perder a perspectiva de que aquilo que você está fazendo é algo que vai estruturar a sua própria carreira. Você não pode brincar, transacionar, ter posições levianas, quando você está defendendo o direto à lei. Você está julgando, você está examinando o direito à lei.

É essa a diferença de um magistrado de carreira, um magistrado de coração, um magistrado vocacionado, para um julgador. Do julgador, você pode medir a eficiência com uma fita métrica. “Fiz dois metros de processo, tá resolvido. Não tenho nenhum processo concluído pra sentença. Sem problema.”

E o magistrado?

EC – O magistrado é aquele que resolve o conflito no nascedouro, é aquele que leva paz social. Não é só aplicar a lei. É ter efetividade e se preocupar com o resultado. Não é só fazer processo. É mais: tem de ir lá e ver se conseguiu solucionar o problema que lhe colocaram nas mãos. “Minha decisão foi efetivada para se ter paz social?” O juiz tem de responder a essa pergunta, ele tem de conhecer o seu jurisdicionado, tem de ver se as sentenças dele tiveram eco no dia a dia.

Sua passagem pelo CNJ foi marcante.

EC – (Risos) Foi um estrondo!

A senhora diria que desperta amores e ódios?

EC – Todo mundo que quer mudar desperta esses sentimentos. Porque a gente não muda à toa. Existem aqueles que estão se locupletando do status quo, que não querem a mudança, e têm ódio de quem quer mudar. E tem outros que entendem que melhor será se houver uma mudança no status quo, e estes adoram quem quer mudar. E eu não dou a mínima importância aos ódios. Não perco o menor tempo com ódios nem preconceitos. Meu tempo é muito precioso.

Entre os processos que a senhora relatou, a Operação Navalha foi seu maior desafio?

EC – Foi o processo mais duro que tive em termos de tamanho, em termos de complicação. Mas a operação que me deixou mais sensibilizada foi a Operação Dominó. Ali eu vi o envolvimento de setores do Poder Judiciário com o crime organizado. Ali fiquei chocada. As interceptações telefônicas mostrando negociação para concessão de liminar em habeas corpus, para prolação de sentença, reintegração de posse… Aquilo me deixou muito chocada.

A expressão “bandidos de toga” veio daí?

EC – Não, foi de quando eu cheguei à Corregedoria. Lá, tive muitos casos. Sempre se acharam intocáveis. Ninguém nunca mexeu. Eu comecei e todo mundo viu o que aconteceu. A reação popular é que fez eles recuarem. A imprensa também ajudou muito.

Julgar uma autoridade é mais difícil do que julgar uma pessoa comum?

EC – Muito mais! A autoridade é blindada neste país. Este país é um país injusto com o pobre. Ele festeja a autoridade. Aliás, a autoridade é uma coisa magnífica! Se dar com autoridade é melhor que se dar com pelego, não é? A autoridade é simpática, é cortês, é agradável… E quanto mais safado, mais agradável(risos). Abre as portas, abre os braços, resolve os seus problemas, tudo com uma simplicidade enorme. São práticos, ágeis, bonitos, arrumados. Eu costumo dizer, quando olho esse pessoal, aquela gravata bonita, a gravata gorda, bonita… A gravata de seda dá um nó diferente. Então eu olho assim o nó da gravata… O nó da gravata denuncia! (gargalhada) Aí a gente compra uma gravata numa loja popular dessas… Dá um nó daquele? Nunca!

Ao se despedir da Corte Especial, a senhora disse que saía aflita como espectadora política, um pouco frustrada como cidadã e inconformada com os desvios institucionais do país. Foram esses sentimentos que a levaram a se decidir pela carreira política?

EC – Quase ao término da minha atividade como magistrada, em que tentei mudar alguns rumos, verifiquei, por esses sentimentos, que eu precisava dar continuidade à minha trajetória. E fiquei pensando no que poderia fazer. Um trabalho que fosse compatível com essa minha aflição. E fiquei pensando: “O que posso ser? Vou ser professora, para resolver isso? Ou vou participar de uma ONG?” E estava pensando que ia me inclinar por essa ONG, quando começaram a me convidar a entrar na vida política.

Foi algo natural, então?

EC – Não! Eu nem admitia que isso pudesse acontecer. Estamos numa fase muito difícil na vida política, todos dizem que você termina muito enxovalhada quando entra na política. Fiquei ponderando, sem dormir direito. Até que cheguei a uma conclusão.

Estava assistindo a um programa na televisão, com o senador Pedro Simon. Ele disse que estava se despedindo da política, mas que estava incomodado, porque estava tudo muito ruim. E perguntaram, no final: “Se o senhor tivesse de dar conselho a um jovem, diria para ele entrar na política?” Ele disse: “Imediatamente. Vá para o seu escritório, pegue o seu computador e comece a se comunicar com as redes sociais. Inicie sua vida política agora. Você, que é jovem e idealista, quer trabalhar pelo país, é aí que você tem de começar.” Naquele dia, eu decidi aceitar os convites. Atendia todos, não dizia nada. Até que um dia estava na hora de decidir.

O que a senhora espera encontrar nessa nova caminhada?

EC – Não sei. É um salto no escuro.

O que o Legislativo pode fazer para melhorar a Justiça brasileira?

EC – Pode tudo. É o poder mais forte da República. É ele que comanda as mudanças.
Fonte: STJ